Domingo é dia de guerra, mas todo dia é dia de Collins, de Fittipaldi
- Maria Clara Castro
- Oct 31, 2020
- 6 min read
Updated: Nov 1, 2020

O automobilismo é o esporte individual mais coletivo que existe. Essa máxima descreve, a meu ver, perfeitamente o esporte a motor. Hoje trago uma reflexão sobre a relação entre os teammates das equipes que compõem a Fórmula 1. Contudo, gostaria de primeiramente ressaltar dois pontos: 1) a reflexão em questão foi desenvolvida à luz de teorias tradicionais de Relações Internacionais – sou aluna do 2º período –, e 2) não conseguiria escrever esta análise sem ter lido o texto “Teoria dos Jogos na Fórmula 1” da Beatriz Rosenburg para o blog The Lap 1. Dito isso, eis o texto:
Nós estudantes de Relações Internacionais logo no primeiro período da faculdade somos apresentados ao conceito de Sistema Internacional (SI), o qual se refere, resumidamente, ao internacional e seus atores. Esses últimos têm os Estados como personagens principais, visto que eles regem e moldam a configuração do SI. Assim, diante do sistema em questão, um Estado tem dois principais objetivos: 1) garantir sua existência, e 2) disputar na arena internacional por maior visibilidade e relevância.
Isso posto, agora vamos ao conceito de Equilíbrio de Poder. Sob a perspectiva da teoria realista, não é possível uma ordem na política internacional, porque a natureza humana é hobbesiana – calma, vai fazer sentido! Eu juro que o que estou dizendo se concatena com a F1. A natureza humana ser hobbesiana significa dizer que o homem é naturalmente agressivo, violento e isso é uma característica imutável. Por essa imutabilidade, princípios morais não podem ser realizados, o que torna ordens social e política internacional inalcançáveis. Resta, então, como única possibilidade aos Estados o equilíbrio de seus interesses.
Em relação ao Equilíbrio de Poder, há dois pressupostos: todos os elementos têm direito de existir e, sem o equilíbrio, um elemento entrará em ascensão, podendo destruir outros. Assim, o conceito em questão diz respeito à configuração do Sistema Internacional e tenta equilibrar os interesses daqueles que fazem parte do SI, de modo que, se perturbado, o equilíbrio tende a se restabelecer de igual ou diferente forma.
Agora vamos aos esclarecimentos. A Fórmula 1 é o Sistema Internacional. Os pilotos são os Estados e têm dois principais objetivos: 1) garantir sua vaga, e 2) disputar o campeonato mundial, buscando bons resultados. Entretanto, atentemo-nos à relação entre teammates - colegas de equipe.
O maior ou talvez um dos mais relevantes inimigos de um piloto é aquele que possui o carro igual ao seu. Se o piloto não supera o teammate, que teoricamente tem o mesmo carro, quem então ele superaria? Se o piloto é o Estado e tem natureza humana hobbesiana, seu instinto natural é destruir seu teammate. Contudo, ele não deve o fazer, em minha perspectiva, por um simples motivo: o mundial de construtores.
Assim como o Sistema Internacional, as equipes prezam pelo Equilíbrio de Poder, ou seja, tentam equilibrar os interesses dos pilotos. Quando há êxito nessa missão, resultados positivos se expressam, vide a Mercedes no campeonato de 2020 com 435 pontos no mundial de construtores, podendo se consagrar heptacampeã amanhã (01/nov), e tendo seus dois pilotos nas duas primeiras posições do campeonato mundial. Todavia, quando há um desequilíbrio, resultados negativos emergem, prejudicando tanto a equipe, quanto os pilotos. Os incidentes envolvendo Daniel Ricciardo e Max Verstappen no GP de Baku em 2018, bem como Sebastian Vettel e Charles Leclerc no GP do Brasil em 2019 são dois exemplos.
Aprofundando mais um pouco situações de desequilíbrio, falemos do duelo Senna versus Prost. Um pouco acima, eu disse: sem o equilíbrio, um elemento entrará em ascensão, podendo destruir outros. Prost, antes de 1988, já era duas vezes campeão mundial pela McLaren, porém, a entrada de Senna na equipe significou um desequilíbrio. Quando um novo elemento integra a arena internacional, ou seja, a emersão de um novo Estado no SI implica uma reconfiguração do Equilíbrio de Poder. A entrada de um piloto em uma equipe demanda uma reconfiguração na dinâmica da equipe para alinhar os interesses dos pilotos aos da equipe.
Não foi o que aconteceu. Senna foi superando o francês, desafiando-o, exigindo-lhe seu melhor, pois caso não performasse bem, Prost prejudicaria tanto a si, quanto a equipe. Senna era um Estado em ascensão, a cada corrida ganhava mais relevância e visibilidade na Fórmula 1. Entretanto, só uma pessoa conseguia parar o brasileiro: Jean-Marie Balestre, presidente da FIA à época. Se me permitem, vou ser bem clubista agora, se não fosse pela sacanagem do Balestre no Grande Prêmio do Japão em 1989, Senna não teria sido desclassificado e Prost não seria tricampeão mundial.
Uma ressalva: não acredito que a natureza humana é hobbesiana. Talvez, de fato, tenhamos uma “agressividade natural”, mas isso é papo para outra hora, outro texto; apenas citei natureza humana à la Hobbes para tentar pensar um pouco sobre o instinto incomensurável dos pilotos de querer vencer seus rivais. Porém, há exemplos no mundo do automobilismo que mostram uma outra face do duelo entre colegas de equipe – o respeito.
No Grande Prêmio de Monza em 1956, caso Juan Manuel Fangio, tricampeão mundial de Fórmula 1 e piloto da Ferrari à época, terminasse a corrida em terceiro ou quarto, já conseguiria pontos suficientes para ganhar o campeonato daquele ano. Mas, durante a corrida, o piloto argentino teve um problema em seu veículo – uma fissura na barra de direção – e Enzo Ferrari pediu emprestado a Luigi Musso seu carro para que Fangio terminasse a prova. Musso, que não disputava o título mundial e era também piloto da Ferrari, negou. Peter Collins, colega de equipe do argentino, viu a situação, desceu de seu carro e o emprestou a Fangio. O inglês disputava o campeonato mundial e mesmo assim não hesitou em fazer o empréstimo.
Trata-se, em primeira instância, de respeito. Era muito pouco provável que Collins ganhasse o campeonato, que mal faria emprestar o carro? Quem seria ele para impedir Juan Manuel Fangio de conseguir ser tetracampeão? Gosto de pensar que esses questionamentos passaram, mesmo que por milésimos de segundo, pela mente de Peter. Enfim, caso esteja curioso, sim, Fangio conseguiu os pontos. Terminou a corrida em segundo lugar, Stirling Moss em primeiro, e se consagrou campeão mundial pela quarta vez.
E não tem como falar de respeito entre pilotos sem citar a primeira vitória de Emerson Fittipaldi na Fórmula 1, vitória essa que completou 50 anos neste outubro. Para isso, pensemos em Monza, setembro de 1970. O piloto alemão radicado austríaco Jochen Rindt liderava o campeonato pela Lotus. O projetista Colin Chapman pediu para que Emerson amaciasse a Lotus-Ford 72, que depois pilotaria Rindt. Fittipaldi perdeu o ponto de freada na Parabólica e bateu em outro carro. A Lotus-Ford 72 ficou destruída. Rindt, então, acabou pilotando um carro já rodado e durante a corrida se acidentou justamente na Parabólica. O resgate foi rápido, mas Jochen não resistiu. A equipe Lotus ficou arrasada e não correu no GP do Canadá em luto pela morte do piloto austríaco.
Final de setembro, início de outubro, Emerson recebeu uma ligação. “Você vai ser o piloto número 1 da equipe” disse Colin Chapman ao brasileiro. Nervosismo, ansiedade, pressão. A Lotus precisava de uma boa performance no Grande Prêmio dos Estados Unidos. Fittipaldi largou em terceiro, a pista estava molhada em certos trechos e seca em outros, a pior condição. Mas ele foi com o cuidado e precisão volta por volta até que chegou à última. Nas palavras de Emerson, “a última volta em Watkins Glen foi uma das mais longas da minha história, parecia que não terminava nunca”. E ganhou. Emerson Fittipaldi levou a Lotus de um final de semana trágico para o pódio, do inferno ao céu. Era a primeira vitória do piloto na Fórmula 1, assim como a primeira vitória do Brasil na categoria. Fittipaldi ganhar a corrida significou, também, a vitória de seu falecido colega de equipe no campeonato. Até os dias atuais, Jochen Rindt é o único a ter o título de campeão póstumo da Fórmula 1.

“Nunca tive uma rivalidade, digamos, pessoal com ninguém. Só rivalidade na corrida, mas não fora da corrida”. Essa foi a resposta de Fangio quando questionado sobre sua relação com seus colegas de equipe. Em uma entrevista “two-way” na pré-temporada de Barcelona em 2017, Daniel Ricciardo perguntou a Max Verstappen: “O que mais lhe agrada em mim?” e Max respondeu: “Você é sério quando precisa ser sério e divertido quando pode ser divertido”. Essa é a beleza do automobilismo. No fim de semana, especificamente, no domingo os Estados vão à guerra. É dia de batalhas, duelos e ultrapassagens, ou seja, o momento de os pilotos desafiarem seus adversários e conquistarem pontos para sua equipe, é a hora de ser sério. Nos outros dias da semana, piadas, risadas, brincadeirinhas são permitidas, na verdade, extremamente bem vindas. Elas trazem um ar leve ao paddock.
Contudo, independentemente de natureza humana e personalidade, o respeito entre pilotos, entre equipes, entre teammates precisa e deve estar em primeira instância. Domingo é dia de guerra, mas todo dia é dia de Collins, de Fittipaldi.
Referências:
Documentário Fangio – O Rei das Pistas, disponível no Netflix
Documentário Senna: O Brasileiro. O Herói. O Campeão. Disponível no Netflix
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